Outra
nova escola (Restrição dos Corpos I)
E lá ia eu para mais uma escola.
Uma outra nova escola.
Minha mãe precisava trabalhar. Só
minha mãe trabalhava. Minha vó cuidava no meu irmão mais novo, bebê ainda. Meu
irmão mais velho tinha 8 anos e se virava, ia para escola sozinho, ajudava em
casa.
Nos anos 90, não tinha pré-escola
de graça para todos. Naquela época, crianças de seis anos ainda estudavam na
pré-escola. Minha mãe pagava para tomarem conta de mim e ela ir trabalhar. Ela
falava isso o tempo todo: minha vó estava doente dos ossos, não aguentava dar
conta de tudo.
Minha mãe e minha avó diziam que
eu só dava trabalho e que o melhor para mim era estar em algum lugar que me
“desse um jeito”. Elas tinham muita fé na escola...
Mais uma manhã e, com seis anos,
lá ia eu para a escola. De novo, uma nova escola. Naquele ano, já era a terceira
vez que eu mudava de escola. Eu estudava em escolinhas de bairro, sabe? É
quando uma pessoa decide juntar umas crianças para tomar conta e cobra por
isso. Os adultos sempre cobram por alguma coisa.
Não gostava de ficar sentada.
Gostava de correr! Esse sempre foi o problema em todas as escolas por onde
passei. Assim que me sentia presa, logo descobria onde era o portão de entrada
e saída, quando ficava aberto, com quem estava a chave. Na primeira
oportunidade, ganhava a rua.
Nenhuma escolinha gostava de mim.
Bagunceira e fujona, diziam. Muita responsabilidade e muito trabalho. Diante do
que minha mãe podia pagar, valia mais a pena eu sair da escola.
Minha mãe precisava trabalhar, só
ela trabalhava em casa.
Em vez de ficar presa na escola,
eu bem que podia pegar o ônibus e ir trabalhar com ela. Para mim, a rua parecia
ser espaço de liberdade.
- Não, Liliane. Você é pequena e
vai me atrapalhar. Vou acabar sendo demitida por sua causa! Fique na escola,
dentro da escola, e espere eu vir te buscar.
Eu esperava. O tempo era o meu
pior castigo. Minha mãe não chegava nunca!
Aquela era mais uma escolinha de
bairro. Uns brinquedos no quintal. No mesmo quarto, duas turmas, uma de
pequenos e outra de maiores. Para minha mãe eu era pequena, mas lá já estava na
turma dos maiores. Por que os adultos não entram em acordo quando precisam
explicar o mundo para as crianças?
Já era maio. Eu tinha acabado de
ser expulsa, no dia anterior, da segunda escola em que fui matriculada naquele
ano. As coisas aconteciam depressa! Minha mãe fez questão de contar tudo para a
mulher que tomava conta das crianças... a história era enorme, mas as mesmas
palavras sempre se repetiam: bagunceira e fujona. Essas palavras eram eu.
Iriam tentar. Se não desse certo,
me devolviam junto com o dinheiro.
Eu fiquei com a dona da escola.
Vi minha mãe cruzando o portão, saindo para a liberdade. Ah, o portão...
Cadeira enfileiradas, crianças
pequenas sentadas. Nem alcançavam a ponta dos pés no chão quando sentadas
naquelas cadeiras. Cadeiras de adultos. Nem eu alcançaria, eu, que já era da
turma dos maiores. A professora, de pé, falava alguma coisa para as crianças.
Mostrava a lousa e o livro. Parecia saber do que estava falando. Eu, que já
tinha alguma experiência com escolas, ainda não entendia nada.
Eu me recusei a entrar naquela
sala. Ah, tudo de novo!? Mudamos tanto de escola para sempre encontrarmos a
mesma coisa!
Chorei pela minha mãe. Mentira,
não era pela minha mãe. Se ela voltasse pela esquina e me visse fazendo aquele
escândalo, eu levaria uma surra ali mesmo. Eu chorei pelo portão. Eu chorei porque
adultos podiam ir e vir onde queriam e eu não. Eu só podia existir se estivesse
presa e vigiada.
Fiquei sentada no beiral da sala.
De lá, conseguia ver o portão. A manhã se foi, o dia passou, já era fim de
tarde e quando quase anoiteceu, minha mãe chegou correndo. Por duas crianças,
eu não era a última a sair da escola. Ela dizia para a diretora que ônibus
demorou por causa do trânsito. Logo, a escola saberia que ela sempre atrasaria
pare me buscar.
Ela me abraçou. Fazia cara de
severa, mas dava para perceber que estava feliz: naquele dia eu fiquei na
escola. Eu fiquei dentro da escola esperando por ela.
A dona da escola disse que eu
chorei, não entrei na sala, que passei o dia sem comer nada. Explicou para a
minha mãe o primeiro dia era assim mesmo, eu estava em fase de adaptação. Minha
mãe fez que nunca tinha ouvido aquela história. Adultos.
Se a dona soubesse que permanecer na sala de aula nunca esteve
nos meus planos desde o momento que passei por aquele portão, pela manhã, ela
não me pouparia tanto...
- Obrigada, Dona Norma. Vamos para casa Liliane, estou cansada
e morrendo de fome.
Meu olhar era de sim. Já era começo de noite e éramos tão
parecidas, cansadas e famintas. Passamos pelo portão e ganhamos a rua, enfim.
Cris Couto, 22/06/2016
Sou Cris Couto: mulher, negra mãe e
escritora.
Publico no blog Flor do Dia: Coletivo do Bonde às quartas-feiras
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